- Me aconteceu uma coisa estranha, hoje-disse Bel para o marido quando ele chegou em casa de noite.
- Estranho é o aumento que eles vão nos dar – disse o marido. – Um absurdo. Ta pronto o jantar? Vou comer e deitar. To morto.
A filha mais velha também reclamou do atraso do jantar. Precisava sair para o curso. O filho do meio veio mostrar que a casca da ferida estava caindo. O bebê chorava. Devia ser o ouvido de novo. Bel não contou o que tinha lhe acontecido. Não era muito importante, mesmo.
Naquela tarde tinham batido na porta. Bel estava no tanque, lavando roupa, lamentando a falta da secadora que pifara e eles não tinham dinheiro para consertar. Foi abrir a porta xingando quem batia e a vida
No dia seguinte o marido de Bel acordou brigando. E suas camisas? Bel gritou que sem secadora, com este clima, não dava e ele gritou mais alto ainda que ela se virasse. O filho do meio começou a jogar bola no corredor. A filha mais velha declarou que estava sem dinheiro para a condução e o pai gritou que ela se virasse também e o bebê acordou e começou a chorar. Não era o ouvido, era para ser ouvido. Quando a bruxa bateu na porta de novo, àquela tarde, Bel aceitou a maçã.
O marido a encontrou estirada no meio da sala. O filho do meio estava jogando bola na rua e não tinha visto nada. O bebê berrava. A filha mais velha ainda não chegara do trabalho. Bel não respirava. Ao seu lado, no chão, havia uma maçã bonita, reluzente, irresistível. Com uma mordida só.
A família da Bel não se conformou com a tese do mal súbito e pediu exame das vísceras. Encontraram traços de uma substância mortífera. Um veneno desconhecido. Ou muito novo ou então muito antigo. Estava na maçã. Abriram inquérito. Houve quem culpasse os agrotóxicos. Houve quem suspeitasse do marido. Como o corpo ficara vários dias no IML, não houve velório. O caixão foi fechado, direto para o cemitério. Entre familiares, repórteres e curiosos havia uma multidão no enterro. O príncipe nem pôde chegar perto da Bel para beijar seus lábios, acordá-la da morte e carrega-la para longe.
Pobre Bel.
(A MÃE DO FREUD – luis fernando veríssimo)
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